sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Morrer

Morrer


Ao morrer eu simplesmente não consegui pensar em nada. A única vontade era procurar a melhor posição para o corpo e esperar o derradeiro instante. Eu me deitei no gramado da praça e fiquei olhando para o céu azul com poucas nuvens. Não me vieram à mente lembranças ou sensações de amor, ódio ou tristeza. O coração parava de bater, o pulso deixava de pulsar e o sangue estagnava. Nada realmente parecia acontecer, a não ser o gradual esgotamento da força vital e a aproximação da despedida. Contudo, nesse momento eu fui surpreendido com um sentimento estranho de paz, de plenitude absoluta. O fraquejar do corpo e da mente eram compensados por essa calma, que gerava uma sensação de prazer indescritível e inigualável. A impressão é que tudo que eu tinha vivido até então só existiu e só podia se justificar por conta daquele centésimo de segundo ali. A morte era a grande razão de ser, e a vida só encontrava sentido no ato de morrer! Foi aí que eu compreendi o grande segredo da vida, foi aí que os meus sentidos se foram e eu morri.

Não sei quantos dias depois eu acordei desnorteado e grogue, rodeado de familiares, em um quarto de hospital. Após recobrar a consciência os médicos me informaram que eu cheguei a ficar morto sob o ponto de vista clínico. Para eles eu era um milagre da medicina, mais um caso de recuperação inexplicável. Se a ciência não explicava, eu é que não podia entender mesmo nada sobre o que aconteceu comigo. 
 
De quando em vez alguém me perguntava se eu tinha visto alguma coisa extraordinária do outro lado da vida, a exemplo de um túnel ou de um parente ou amigo falecido. Eu não tinha visto nada ou ninguém: só senti e o que senti era absoluto e inenarrável. Todas as vezes que tentei explicar essa passagem eu saí com a impressão de que a pessoa pensava que eu estava louco ou com tendências suicidas. Daí a resignação em não tocar mais no assunto.

Depois de uma temporada de descanso eu tentei retomar a antiga rotina: voltei ao convívio com a família, ao trabalho como advogado e ao lazeres de sempre. Também comecei a cuidar da saúde, passando a fazer exercícios físicos com regularidade e a ter uma alimentação mais natural. Ocorre que o contentamento por reencontrar familiares e os amigos foi pouco a pouco dando lugar a um sentimento inicial de frustração. Com efeito, tudo tinha menos ou nenhum sentido face o que eu tinha vivido. É como se uma nostalgia da eternidade tomasse conta dos meus atos, dos meus pensamentos. O único consolo é que eu poderia voltar a vivenciar aquela sensação mais uma vez, afinal por alguma razão desconhecida eu escapei das garras do anjo definitivo.

A melancolia e a tristeza pareciam tomar conta da minha vida por inteiro. Eu não tinha gosto pela vida, nem mesmo pelas coisas que antes costumavam me dar mais prazer. É o caso do cinema, da comida, do futebol e da literatura. Entretanto, algo aconteceria que modificaria esse processo depressivo: meses depois eu morreria pela segunda vez. Eu também não senti nada a não ser o gradual esgotamento da força vital e, logo antes de perder a consciência, um sentimento de paz e de plenitude absoluta. O prazer era indescritível: morrer valia a pena, na verdade morrer era o único ato pelo qual valia a pena viver! Isso me deu uma nova consciência, porque agora eu sabia que podia morrer mais de uma vez. Sim, a vida não era o fim de tudo, eu poderia morrer e viver novamente.

De fato, pouco mais de um mês depois eu voltei a passar por tudo outra vez. A morte e o bem-estar gerado por ela passaram a me visitar cada vez com mais frequência. De meramente eventual o fenômeno se tornou mensal, depois quinzenal e depois semanal até se tornar quase diário. Com o tempo e com o acúmulo dessas vivências, eu comecei a ter algum tipo de controle sobre o ato da morrer. Então, quando acontecia algo irritante eu morria, quando estava muito cansado eu morria, quando estava tudo um tédio eu morria e quando apenas queria divertimento eu também morria. Morrer virou remédio para tudo e para nada.

O importante não é a morte em si, mas o ato de morrer. Nada mais humano, nada mais animal, nada mais pertencente à natureza.