desmond
partiu
o
apartheid
a
ignorância
o
preconceito
a
tirania
mas
hoje
os
nossos corações
é
que ficaram
partidos
sua
alma
abraçou
a imensidão
ao
invés do luto
que
fique o exemplo
da
sua luta
pelo
pão e pela paz
pela
partilha e pelo perdão
talvez
seja a
ação
a
mais bonita forma
de
oração
se eu colocar milhares
e milhares de palavras e
conectivos
em uma caixa fechada
e depois retirar
algumas
aleatoriamente
será que terei a sorte
de formar um poema?
fazer um poema
(de verdade)
é como ganhar na
loteria
da linguagem:
só que
um milhão de vezes!
não há cura
para a amargura
nem remédio
para o tédio
nem mesmo
arrancar
o dedo médio
ou saltar
de grande altura
viver é algo
que se atura:
sem nédio
nem intermédio
hoje de tarde
eu fiz
um poema
tão lindo
mas tão lindo
confesso nunca
ter escrito
nada parecido
mas o fim da tarde
foi tão belo
e colorido
que eu me esqueci
do poema
na madrugada fria
crianças famintas
dormem
nos becos
e nos bancos de praça
passando do outro lado
da rua
(no seu automóvel
último modelo)
uma distinta senhora se
escandaliza
com a travesti alegre
que roda a bolsinha
na calçada
palavra
não dita
é palavra
maldita
fica latejando
no pescoço
corroi
a alma
a carne
e até o osso
(palavra
não dita
é sempre
desdita)
4.XII.2021
eu a amo
porque me vejo
nos seus olhos
e também
porque a vejo
nos meus olhos
quando olho no reflexo
dos meus olhos
nos seus
o amor é
um jogo
de espelhos:
só o infinito
o preenche
(o lago se ama
em narciso
que se ama no lago)
28.VII.2021
vidas negras
não importam
(não importam aviões
automóveis bicicletas
canetas casacos
computadores helicópteros
joias lanchas
paletós relógios vinhos)
vidas negras
só importam
quando capazes
de importar
*poema escrito no dia 20 de novembro de 2021, Dia da Consciência Negra.
um bicho
de estimação
quando morre
não é apenas
um membro da família
que se vai
é um membro do corpo
que mesmo
arrancado
continua a arder
essa cachorrinha
ainda late
e lateja
em mim
ah, e como
dói!
se a vida
é louca
se o mundo
é louco
pouco
importa
melhor
loucura muita
do que a vida
pouca
e torta
amar
é como
morrer:
se perder
se dissolver
deixar de ser
aquilo que se era
(mas não amar
é como
nunca ter vivido)
augusta
angústia
um urubu
pousou
na minha morte
monólogo
dos anjos
das sombras
do eu
personalíssima
poesia
e pessoa
o verbo amar
o verbo
amar
contém
a palavra mar
– que, por sua
vez, contém
o verbo
imergir
se afogar
o verbo
amar
contém
a palavra ar
– que, por sua
vez, contém
o verbo
levitar
voar
(o verbo
amar
só não contém
o advérbio não
e o verbo esperar)
25.VII.2021
sem
arte
a
vida
arde
sem
arte
a vida
é
marte
sem
arte
a vida
à parte
sem
arte
a
vida
é morte
sem
arte
a
vida
é corte
sem
arte
a vida
enfarte
nesta noite
de 23 de junho
vai ter
fogueira
vai ter
balão
sumindo
vai ter
fogos
a colorir o céu
vai ter
casamento matuto
quadrilha
forró
xaxado e baião
(neste noite
há um arraial
pulsando em mim)
de manhã
pressinto
de tarde
sinto
de noite
me ressinto
(a qualquer hora
absinto)
(cabedelo, 03.04.2021)
(homenagem ao poeta lau siqueira)
dentro de mim
existem tigres
livres
e não livres
os não livres
no entanto
anseiam desesperadamente
pela liberdade
(a maior prisão
é se conformar
com a realidade)
(cabedelo, 07.04.2021)
viver
a utopia
não é negar
o dia-a-dia:
viver
a utopia
é só antever
o (raiar
do) novo dia
(cabedelo, 06.04.2021)
